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TÚNICAS DE CEGO

Nothomb (TC:43-54) – "Criar", verbo unicamente divino

Que quer dizer "criar" em sentido bíblico?

quarta-feira 26 de outubro de 2022, por Cardoso de Castro

      

O Criar da sequência inicial concerne o conjunto   do processo que vai descrever o “Relato dos Seis Dias” e não sua primeira etapa, assim como “os céus e a terra  ” designa o mundo ainda em projeto — trata-se a princípio de um título ou como sugere Rachi, de uma proposição subordinada, que se deveria traduzir: “Quando Deus   começou a Criar o mundo”.

      

Para distinguir   notadamente o “criar” divino, Nothomb   sempre que utiliza este verbo o faz com a primeira letra   maiúscula, denotando uma obra exclusiva do Criador, e assim seguindo de perto o sentido do verbo hebreu   ‘BR do qual só Deus   pode ser o sujeito  . Mas que quer dizer “Criar”, como já se menciona no RELATO DOS SEIS DIAS na abertura   da “Criação”?

Interessante verificar que nas traduções, o verbo “criar” neste RELATO é pouco frequente. Diz-se “Deus disse”, “Deus fez”, “Deus fez crescer”. “Deus criou” é quase uma exceção. Só no primeiro verso, e no vigésimo primeiro, a tradução fala “criar” enquanto nos demais versículos relatando o desdobramento dos quatro primeiros dos seis “dias” da Criação, não se fala em “criar”, nem a luz, nem o firmamento, nem os astros, nem as plantas, mas que Deus os “fez” (poiein  ) ou os “fez fazer”, ou, no caso da luz, que sua palavra foi suficiente a suscitá-la (“Deus disse”).

No entanto neste texto capital de toda tradição judaico  -cristã, onde nenhuma palavra, nem seu lugar no texto, são escolhidos ao acaso, o verbo traduzido por “criar” (como se tratasse de “criar um modelo”) não é sinônimo de “fazer” nem de “fazer fazer” nem exprime a realização  , a passagem ao ato do programa que Deus se fixou para cada um destes “dias” simbólicos, anunciando cada vez suas intenções.

Precisemos que o hebreu, longe de temer como os ocidentais o efeito da repetição, não hesita jamais em empregar nas sequências sucessivas o mesmo termo, se é este que convém. A raridade das ocorrências no relato dito da Criação do verbo hebreu traduzido por “criar” (onde, a parte o título e a conclusão, não aparece senão no princípio do quinto dia e no final do sexto) mostra que não convém para designar não importa que obra do Deus Criador, mesmo a luz  . A nossa noção “artística” de “criar”, mesmo com Deus por sujeito, a nossa concepção de inventar do novo, mesmo retirado do nada (o ex nihilo dos teólogos  ) “Criar” adiciona manifestamente algo de particular, que a parcimônia de seus empregos nos permite a princípio de cernir, até de definir   sem muita dificuldade  , por pouco que prestemos atenção.

O Criar da sequência inicial concerne o conjunto   do processo que vai descrever o RELATO e não sua primeira etapa, assim como “os céus e a terra  ” designa o mundo ainda em projeto — trata-se a princípio de um título ou como sugere Rachi, de uma proposição subordinada, que se deveria traduzir: “Quando Deus começou a Criar o mundo”. Dito de outro modo, tende a um fim, uma meta que é anunciada aqui em seu início. E este fim, este coroamento, é a Criatura última, a última do sexto dia, o último dia da Criação, e cuja vinda à existência é saudada no texto por um triplo “criou” como o buquê de um fogo   de artifício sobre a obra completada (Gen 1,27)

O “Criou” do versículo 1 anuncia portanto o triplo “Criou” do versículo 27 e indica o sentido, o fio condutor que subtende toda a obra divina, segundo a “Bíblia das Origens”, Deus não Cria o mundo senão em vistas do Homem  , ele só programa as etapas e só as realiza com vistas ao Homem três vezes “Criado”, e é esta intenção, esta particularidade que orienta desde o início a Criação. O antropocentrismo flagrante da “Bíblia das Origens” é proclamado por este “Criou” desde a primeira linha.

Mas então se objetará talvez, que vem fazer o “Criou” do versículo 21, que nada tem de aparentemente antropocêntrico, ao contrário? Não surge subitamente no texto, vinte versículos depois do primeiro, a respeito dos peixes (aos quais estão associados os pássaros) muito mais próximos do Homem que os “animais   terrestres” que os seguem e que, eles, não têm direito ao “criar”? Não é dito que o sexto dia, justo antes de criar Homem por três vezes, Deus “fez” os animais terrestres, como “fez” o firmamento e os astros? Como se o texto empregasse arbitrariamente ora “Criar” e ora “fazer” ou ainda perífrases para dizer a mesma coisa. Como se não fosse o verbo que contasse mas o fato que Deus disto é sempre o sujeito, e se afirma assim neste RELATO como o único Criador?

Respondo que em um caso pelo menos, aquele da vegetação, é dito que é a terra que a “produz” e não Deus, mesmo se é dito anteriormente que Deus convidou à terra a proceder a este crescimento (1,11-12). Logo Deus não é sempre neste RELATO, se foi cuidadosamente redigido, o autor direto de sua obra. Iria ainda mais longe: ele não assume este papel em nosso texto senão como sujeito do verbo Criar. As três vezes onde é sujeito do verbo “fazer”, a forma utilizada deste verbo pode ser lida como um causativo, e traduzida não por “fez” mas por “fez fazer”.

As marcas   distintivas da forma ordinária do “causativo” hebreu desaparecem na forma reduzida do “incompleto” que utiliza o estilo narrativo deste relato, em particular os versículos 7, 16 e 25, onde Deus é sujeito de WY’SS (apócope incompleta de ‘SSH, “fazer”). Da mesma forma nos versículo 4 e 7, quando é dito em nossas bíblias que Deus “separou”, a apócope incompleta WYBDL, de BDL, “separar”, pode ser lida “fez separar”.

Deduzo que impulsionada pelo “Criou” inicial (1,1) a obra divina se desenvolve de alguma forma dela mesma até o “Criou” seguinte (1,21) segundo o germe (o programa) que a palavra de Deus depôs nela “no princípio” para os quatro primeiros “dias”. Mas no quinto dia intervém uma “mutação” decisiva, uma diferença   não de grau mas de natureza, um salto qualitativo intransponível para qualquer “programa”, e que nenhum acaso, nenhuma necessidade  , nenhum determinismo mesmo muito solto não pode espontaneamente provocar. Uma nova impulsão Criadora parece indispensável. De que ordem  ? É aqui que aparece a significação exata do verbo Criar. O que é que separa radicalmente o “reino animal” do “reino vegetal” e mesmo do “reino mineral”: não a composição da matéria orgânica ou inorgânica, mas a emergir, no seio desta matéria, a liberdade.

A liberdade de movimento  . Não confundir com a capacidade de movimento, própria a toda energia, toda matéria, todo embrião de vida. Das partículas aos astros e às plantas. Falo da capacidade de movimento não repetitivo, não previsível, não quantificável, não enraizado. Esta primeira forma concreta de liberdade, Deus a introduziu na sua obra com os peixes — os primeiros animais segundo a cronologia comum à Bíblia das Origens e à... Darwin. E ela se transmitiu em seguida, pela evolução genética, complexificação, adaptação às circunstâncias, que Deus deixou fazer ou fez fazer sem nova impulsão Criadora, mesmo se ele acompanha o processo pela palavra, aos animais terrestres. Aqueles herdando naturalmente dos peixes a liberdade de movimento, Deus não tem necessidade de intervir para lhes dá-la. Pelo contrário ele deve o fazer “triplamente” em favor do criar Homem a quem ele quer dar uma forma de liberdade infinitamente superior àquela dos animais, quase comparável a sua.

O triplo “Criou” (’BR) para o Homem (H’DM) de Gen 1,27 não é o efeito de uma acesso de lirismo passageiro   do redator deste primeiro RELATO posto que ele se encontra no terceiro relato (5,1-2) que conta uma segunda vez a Criação do Homem tornado entrementes   “Adão” (’DM; vide Adam). O texto de 5,1 e 2 difere daquele do Gen 1,27 que relembra tendo em conta desta diferença provocada pela “Queda” mas o verbo ‘BR aí figura três vezes como em Gen 1,27. A repetição deste triplo ‘BR do qual ele é o único beneficiário mostra bem que o Homem é para a Bíblia das Origens a Criatura livre por excelência, e certamente aparte sob esta relação.

Não é portanto arbitrariamente que Criar figura no texto a respeito dos primeiros animais e não de seus sucessores, nem a respeito da luz, do firmamento, dos astros e das plantas, que o processo da evolução “darwiniana” ou a din  âmica do hipotética “big bang” são suficientes a explicar. Este Criar intermediário se situa sobre o fio condutor que vai do Criar inicial ao triplo Criar saldando a aparição do Homem e desvela o elemento comum que os reúne em última análise. Não é somente a ação pessoal de Deus. Não é também a meta privilegiada desta ação, que seria a simples vinda à existência do Homem no seio de nossas bíblias. É a liberdade em vista da qual o mundo em geral, os peixes e os pássaros em particular e o Homem por excelência são sucessivamente concebidos por Deus, segundo a Bíblia das Origens.

A liberdade que não é somente um dom irrevogável, uma faculdade inestimável. Aqueles que a receberam devem exercê-la. A pôr em prática. Dela beneficiar, dela desfrutar nos limites de sua natureza. Antes de ser um risco ela é plenitude  . Não é por acaso que o texto faz dizer por Deus àqueles que acaba de Criar: preenchei o espaço! Vosso espaço! Aos peixes, as águas, os mares. Ao Homem a terra. Aos pássaros também: não diz os céus, mas a terra. Prova que não se trata de seu meio mas dos limites naturais de sua liberdade. [TÚNICAS DE CEGO  ]

“Que a pássaros - gente alada seja numerosa sobre a terra” (Gen 1,22). Literalmente “na terra” (B’R (TS) pronuncia-se “baarets”). Em Gen 1,21, é dito “que ela voe acima da terra, na superfície do firmamento dos céus” e em Gen 1,30 será questão “da gente alada dos céus”. Em Gen 1,21 e Gen 1,30, a gente alada é vista em seu meio. Enquanto que Gen 1,22 precisa os limites de sua liberdade. Se os pássaros voam, não podem indefinidamente deixar a terra.

Uma outra prova é que este apelo não é dirigido aos animais ditos “terrestres”, que Deus não “Criou”, mas que “deixou fazer” pela terra.

“E Deus disse: que a terra produza animais...” (Gen 1,24).
“E Deus fez fazer (ou deixou fazer) WY’S os animais terrestres...” (Gen 1,25).

E no entanto os animais terrestres se assemelham aos peixes e aos pássaros (e às plantas) e se distinguem do Homem, sempre segundo a Bíblia das Origens, em que constituem por natureza “espécies”.

A palavra “espécie” (MYN, que quer dizer “sexo” em hebreu moderno) não figura menos de dez   vezes no RELATO a respeito das plantas, dos peixes, dos pássaros e dos animais terrestres (1,11.12.21.24.25) Jamais a respeito do Homem.

Se portanto este apelo, como o pretende a interpretação tradicional fazia parte de uma diretiva natalista, de uma exortação a propagar, por via da reprodução sexual, as diferentes espécies, porque não seria dirigido aos animais terrestres, e porque o seria ao Homem? (vide Crescei e Multiplicai-vos).


É ao final do RELATO, após ter confiado ao Homem a terra com sua flora e sua fauna, que Deus "contempla tudo que fez e o considera muito bom" ao final do "sexto dia". Tudo que fez e aí compreendido, certamente, o que ele "fez fazer" ou "deixou fazer" pela evolução natural  .

Aí se completam "os céus, a terra e todo seu exército", conclui o texto e adiciona que — é o "sétimo dia" — Deus cessa disto se ocupar. Ele para, não se mete mais.

É o sentido do verbo hebreu (SH) BT (pronunciado: sabá) empregado.

E isto o texto o diz duas vezes em sequência, com uma variante. A primeira vez "O sétimo dia ele parou de toda sua obra que tinha feito". A segunda vez na última frase do relato "(Neste dia) ele parou de toda sua obra que tinha Criado, ele Deus, para fazer".

Por um lado "toda sua obra que para agora" Deus, o texto afirma então "que ele tinha feito" e em seguida "que tinha Criado para fazer".

’(SH) R BR’ L’SSWT (que ele tinha Criado para fazer) em Gen 2,3 justo depois ‘(SH) R ‘SSH (que tinha feito) em Gen 2,2.

Se se pensa como nossas bíblias que "Criar" (que elas escrevem "criar") e "fazer" com Deus por sujeito constituem quase-sinônimos, a última expressão, que contém a última menção de Criar no RELATO, aparece certamente estranha. Se "fazer" com Deus por sujeito quer dizer aproximadamente a mesma coisa que Criar, que significa "Criar para fazer"?

Se pelo contrário, como o indica o fio condutor das seis ocorrências de "Criar" que atravessam o RELATO dos quais três focalizados sobre o criar Homem, "Criar" quer dizer em realidade "dar liberdade", e "fazer" com Deus por sujeito "fazer fazer" ou "deixar fazer", a expressão se torna muito clara, mesmo se sua revelação é estupeficante.

O primeiro BR’ (Criar) figura em Gen 1,1; o segundo em Gen 1,21 (os peixes e os pássaros); o terceiro, o quarto e o quinto em Gen 1,27 (o criar Homem). Enfim o sexto aqui em Gen 2,3.

Enquanto a "obra de Deus" não é concluída, "Criar para fazer" é a impulsão do "Criar" inicial disparado pelo "Criar" superior dos primeiros animais e encontrando seu apogeu no triplo "Criar" do criar Homem, o fazer progredir, entre estes saltos qualitativos, por evolução natural. Mas a obra de Deus concluída, e Deus cessando dela se ocupar, que pode ser este "fazer" que evoca senão a ação do criar Homem?

E de pronto "criar para fazer" (e não "Criar em o fazendo", como traduz Segond sem qualquer desculpa) desvela o porque, se se pode dizer, da obra de Deus. O Homem não é somente o centro  , o auge, a meta da criação. Ele dela é a princípio, de alguma maneira, a origem  . A "origem incriada"? Impossível! E no entanto a Bíblia das Origens não hesita a sugeri-lo em nos ensinando que toda sua obra, Deus não fez senão confiar ao Homem uma vez concluída, que ele a tinha Criado para isso. Para ver o que o Homem iria dela fazer. Não para a continuar, certamente, posto que ela estava concluída, mas para decidir soberanamente de seu sucesso ou de seu fracasso. De sua realidade. Do sucesso ou do fracasso, da realidade ou da ficção da liberdade que ele encarna, e diante da qual por esta razão, até hoje em dia, Deus se eclipsa e se abstém de intervir em nossa sangrenta História.


Ver online : PAUL NOTHOMB