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Stromata Gnósticos

terça-feira 29 de março de 2022

      

Clemente de Alexandria   - Stromata IV-V, Fuentes Patrísticas 15, - Martírio cristiano e investigación sobre Dios, edición bilingüe, introdução, tradução e notas por Marcelo Merino Rodríguez, Editorial Ciudad Nueva, Madrid, Espanha, 2003, 633 p., ISBN 84-9715-035-X

Contribuição e tradução de Antonio Carneiro das páginas 177 até 185, Capítulo XIII - 89,1-6 — 94, 1-4

89 - 1. Em verdade, também sobre estas coisas seria prolixo o discurso, que se reserva para tratar quando se apresente a ocasião. 2. Não obstante, Valentino   escreve em uma homilia   textualmente: “Desde o princípio [1] sois imortais, são filhos naturais da vida eterna; haveis querido compartir a morte entre vós, para aniquilá-la e consumá-la, para que a morte seja absorvida entre vós e por vós. 3. Efetivamente, quando dissolvais o mundo, mas sem que sejais vós dissolvidos, dominareis sobre a criação e sobre a destruição [2]” . 4. Com efeito, também este, como Basílides, supõe uma raça   que se salva pela natureza [3]; mas que essa raça superior viria até nós aqui desde acima para destruir a morte, enquanto que a origem   da morte seria obra do criador do mundo [4]. 5. Por isso (Valentino) interpreta assim aquelas palavras: “Ninguém que veja o rosto de Deus   viver  á” (Ex 33, 20), como se causasse a morte [5]. 6. A respeito a este Deus alude quando escreve estas expressões: “Quanto menor é a imagem do rosto vivente, tanto menor é o cosmos ao eon vivente [6]”.

90 - 1. “Qual é , pois, a causa   da imagem ? É a majestade do rosto a que proporcionou o modelo ao pintor, para que seja honrado mediante o nome do modelo. Com efeito, não se encontrou de maneira autêntica uma forma, mas sim que o nome supriu o que faltou na plasmação. Desta maneira, também o invisível de Deus contribui para a fé do que foi plasmado [7]”. 2. Assim denomina ao demiurgo  , chamado como Deus e Pai  , imagem e profeta   do Deus verdadeiro; mas chama pintor à Sabedoria  , cuja plasmação é a imagem, para a glória   do invisível [8]; porque o que procede de um par são plenitudes, enquanto que o que procede de um são imagens [9]. 3. Mas posto que o que aparece dele não é a alma   intermediária [10], vem então o superior, o sopro do espírito superior que insufla por inteiro n’alma, na imagem do espírito; e em geral, o dito Demiurgo, feito “a imagem” [11], afirmam eles que no “Gênesis” está profetizado isso mesmo em forma de imagem sensível   a respeito da formação do homem  . 4. E precisamente eles se aplicam a si-mesmos a semelhança  , mostrando que a comunicação do espírito superior lhes chegou sem que soubesse o Demiurgo [12].

91 - 1. Em verdade, quando formos tratar sobre a unidade   de Deus, proclamada pela Lei, os profetas e o Evangelho, discutiremos também esta questão [13] (porque o logos   - Logos é o primordial [14]), mas tem que ir ao encontro do que apressa . 2. Se a raça superior vem para destruir a morte, então Cristo   não aboliu a morte, a não ser   que se diga que também ele era consubstancial [15] à eles; por outro lado, se Ele a aboliu para que não afetasse a raça superior, não aniquilando a morte à esses, os remedadores [16] do Demiurgo, os que formam parte da alma intermediária, os que insuflam em sua própria imagem a vida que procede do alto, segundo esta doutrina   herética, ainda que afirmem que isto sucede por meio da mãe [17]. 3. Mas, ainda que afirmassem que com Cristo lutam contra a morte, confessem a doutrina que permaneceu oculta, quer dizer, se atrevem a lançar invectivas contra o divino   poder do Demiurgo, retificando sua criação eles, enquanto melhores que aquele, e tratando de salvar a imagem psíquica que o Demiurgo não pôde livrar da corrupção. 4. Portanto, também o Senhor seria melhor que o Deus criador. Então, o Filho nunca poderá lutar contra o Pai, porque se tratam de deuses [18].

92 - 1. Mas, que Ele é o Pai do Filho, o criador do universo  , o Senhor omnipotente, deixemos para refletir   sobre o que prometemos discutir frente às heresias, demonstrando que o (Pai) é o único predicado pelo (Filho). 2. Então, o Apóstolo, ao escrever   sobre a paciência nas tribulações, nos diz: “Também isso vem da parte de Deus; que a vós se lhes foi outorgado por Cristo não somente crer em Ele, mas sim também padecer por Ele; sustentando o mesmo combate   que haveis visto em mim   e agora ouvis de mim. 3. Se tem pois, alguma consolação em Cristo, algum estímulo de amor, se existe alguma comunhão de espírito, se tem ternura e misericórdia, enchei minha usufruição, julgando o mesmo, tendo o mesmo amor, com iguais sentimentos, pensando uma só coisa” (Flp 1,28; 2, 2). 4. Se (o Apóstolo) se imola “no sacrifício e no serviço da fé” (Flp 2, 17), enquanto alegra e congratula, aos que o Logos, com o Apóstolo, aos filipenses, os chama co-partícipes da graça [19], como os denomina de idênticos sentimentos e psíquicos ? 5. De igual modo, quando escreve sobre suas relações com Timóteo, diz: “Não tenho a ninguém com os mesmos sentimentos que com sinceridade cuide do vosso. Com efeito, todos buscam seus próprios interesses, não os de Cristo Jesus” (Flp 2, 20-21).

93 - 1. Assim pois, os mencionados (hereges  ), e também os frígios [20], não nos denominam psíquicos, como se fosse uma infâmia. com efeito, também esses (frígios) chamam psíquicos Àqueles que não obedecem à nova profecia  ; discutiremos com eles nos (escritos) “Sobre a Profecia” [21]. 2. Então, é necessário que o (homem) perfeito pratique o amor e desde aí tenda rumo à amizade   com Deus, cumprindo os mandamentos por amor. 3. O amar aos inimigos, diz (a Escritura), não é querer o mal [22], nem a impiedade, o adultério ou o roubo, mas sim (amar) ao ímpio, ao adúltero e ao ladrão, não enquanto pecam e com tais ações mancham a denominação do homem, mas sim como homens e obras de Deus. Obviamente o pecar consiste em uma ação, não em uma substância; por isso não é obra de Deus [23].

94 - 1. Os pecadores são chamados inimigos de Deus [24] pelo distanciamento que provem de seu livre arbítrio, pois são inimigos dos mandamentos, aos que não obedecem, ao igual que são amigos (de Deus) os que os obedecem e por isso são chamados familiares (de Deus) . 2. Nada é a inimizade nem o pecado   sem inimigo e sem pecador. [25] O (preceito de) não desejar não revela não ter desejo algum, como se as coisas desejáveis (nos) fossem estranhas, conforme deixam deslizar os que adoutrinam que o Criador é diferente do Deus primeiro [26], quando não que a geração é abominável e má; 3. estas opiniões, pois, são ímpias, e nós chamamos estranhas às coisas do mundo, não porque sejam absurdas, nem como não pertencentes à Deus, Senhor de tudo, mas sim porque, ao não permanecermos nelas toda eternidade  , são estranhas por possessão, pois são de uns e de outros sucessivamente, mas à respeito de sua unidade são próprias de cada um de nós, para quem também foram feitas; tão somente tem que aproximar-se à elas na medida do necessário. 4. Conforme, pois, ao impulso natural   tem que fazer bom uso do que não está proibido, evitando toda exageração e complacência nisso.


NOTA DO TRADUTOR Para os que querem se aprofundar de forma específica neste assunto, recomenda-se a leitura do texto de Antonio Orbe  , "Los hombres y el creador según una homilía de Valentín (Clem. Strom. IV, cap 13; 89,1 -91.3)", Gregorianum 55 (1974) pp. 5-48 ; 339-368.

Caso haja interesse   maior pelo tema valentiniano, outros textos deste autor, descritos a seguir, poderão vir a contribuir no estudo do leitor veja também Orbe Bibliografia):

Antonio Orbe, Estudios valentinianos 5 t., Pontificia Universitatis Gregorianae (PUG), Roma, 1955-1966.
— Hacia la primera teología de la procesión del Verbo 1958, pp.(755-788). Series Estudios Valentinianos - v. 1.
— En los albores de la exegesis   iohannea (Ioh. 1,3) 1955, pp.(379-387). Series Estudios Valentinianos - v. 2.
— La unción del Verbo, 1961, pp.(657-683).Series Estudios Valentinianos - v. 3.
— La teologia del Espiritu Santo. 1966, pp.(707-747).Series Estudios Valentinianos - v. 4.
— Los primeros herejes ante la persecucion. 1956. Series Estudios Valentinianos - v. 5.

Antonio Orbe, "La muerte   de Jesús en la economía valentiniana", Gregorianum 40 (1959) pp. 467-499; pp. 636-670

Antonio Orbe, "La encarnación entre los valentinianos", Gregorianum 53 (1972) pp. 201-235.

Antonio Orbe, "Los valentinianos y el matrimonio espiritual. Hacia los orígenes de la mística nupcial", Gregorianum 58 (1977) pp. 5-53.

Antonio Orbe, "Trayectoria del Pneuma   en la Economía valentiniana de la salud", Compostellanum 33 (1988) pp. 7-52.

Antonio Orbe, Biblia   y teologiá entre los valentinianos: ejemplos de interferencia entre exegesis y teologia (1996) - In: Augustinianum 36 (1996) pp. 5-12



[1Quer dizer, antes da criação do mundo; cf. Antonio Orbe, “La teologia del Espiritu Santo” , p.172.

[2Valentino, Fragm., 4. Valentino se refere aos homens “pneumáticos” . Esta é a filosofia religiosa valentiniana, que tenta explicar a universal pré-existenciado mal no mundo e da morte em particular. assim, este heterodoxo distingue tres etapas: a origem do mundo, tragédia ou pecado, restauração ou salvação. Para uma aproximação destes temas, vide S.FERNANDEZ ARDANAZ,“El mito” , pp. 241-251; Antonio Orbe, “Hacia la primera teologia” , p.112; Antonio Orbe, “Introdución a la Teologia” , pp. 333-334; Antonio Orbe, “Antropologia” , p.419; J.E. DAVISON, “Structural Similarities” , pp. 202-206.

[3Esta opinião herética é frequentemente combatida por nosso autor e outros escritores não eclesiásticos como Plotino - PLOTINO, “Enn.” , II, 9, 16; Porfirio - PORFÍRIO, “De Abst.” , I, 42. Cf. W.A.LÖHR, “Gnosticism Determinism Reconsidered ” , pp. 383-385; FR.BURI, “Clemente de Alexandria - Clemens Alexandrinus” , pp. 20-21.

[4Para Basilides, como para outros gnósticos hereges, a morte não é consequência do pecado dos homens, mas sim obra de um Demiurgo mau; cf. “Exc. ex Theod.” 16,1; 28,1; etc.

[5Quer dizer, Deus seria a causa da morte.

[6A expressão “aion - eon vivente” é sinônimo de “Pleroma” , que na doutrina valentiniana equivale ao lugar definitivo dos espirituais: Antonio Orbe, “En los albores” , p.96; Vide também a explicação de A. VAN DEN HOEK, “Sytromatas IV” , p.204, nota 3.

[7Valentino, Fragm., 5. Um comentário à este fragmento de Valentino pode-se ver em Antonio Orbe, “En los albores” , pp. 354-377. Para o termo “nome” como constitutivo formal de pessoa, vide S.FERNANDEZ ARDANAZ,“Genesis y anagennesis” , pp. 213-229.

[8Para o gnóstico Valentino, entre as coisas que se veem e as invisíveis existe a mesma diferença entre o criador de uma coisa e o pai de um filho respectivamente. O que cria o faz visivelmente e ele mesmo se faz visível, enquanto que o que engendra o faz oculto e ele mesmo permanece oculto: Antonio Orbe, “Teologia de San Ireneo” , II, p.55.

[9O termo pleromata (plenitudes) indica um produto completo; ao contrário, a “imagem” unicamente faz referência ao protótipo, daquilo que ela é um reflexo: F. SAGNARD, “Extraits” , p.129, nota 5. Para este termo vide Antonio Orbe, “La teologia del Espiritu Santo” , pp.1-9.

[10Termo característico dos valentinianos para designar o lugar supra-terrestre entre o céu e o Pleroma, onde reside Sophia. Em Clemente de Alexandria, deve-se entender o elemento humano entre o corpo e o espírito: S. FERNANDEZ ARDANAZ, “Genesis y anagennesis” , p. 112, nota 40a .

[11Gn 1, 26; Gn 2, 7

[12Para os valentinianos o “homem perfeitamente homem” era só o “pneumático” , o único que tinha a “forma Dei” e por isso a “imagem e semelhança à Deus” ; enquanto o “físico” era só “a imagem” ; vide J.PÉPIN, “Idées grecques” p.23. O Demiurgo adormeceu, dizem os valentinianos, e se esqueceu de inspirar o racional; para outros, durante o sono outros arcontes maus formaram do barro somente o homem “hílico” : S.FERNANDEZ ARDANAZ, “El mito” , p. 42; ID., “Genesis y anagennesis” , pp. 173-176.

[13Quer dizer, sobre a ignorância do Demiurgo.

[14Esta expressão estranha a ideia de capacidade ou soberania para os homens vindo depois: Antonio Orbe, “Teologia de San Ireneo” , II, p.365.

[15O termo homoiosis (consubstancial) era usado pelos valentinianos para indicar a relação “natural” entre as criaturas e seu Demiurgo, Clemente enfrenta à esta doutrina afirmando que a “consubstancialidade” entre o Criador e sua criatura é só “energética” ou “dinâmica” S.FERNANDEZ ARDANAZ,“Genesis y anagennesis” , p. 33, nota 60; CH.BIGG, “Christian Platonist” , p.221; R.V.SELLERS, “Two Ancient Christologies” , pp. 18-20; K.SCHÖLE, “Die pneumatische Gnosis” , p.79.

[16NT: Inexiste no Dicionário Houaiss da língua portuguesa.“Remedadores” é neologismo, mas, foi a mais próxima no contexto equivalente a usada em espanhol: “remedadores” , pois remedar significa 1. arremedar. 2.imitar ( ave, como o papagaio) a voz humana ou outro som.Por sua vez arremedar significa: 1. tentar reproduzir (som, estilo, comportamento, etc). 2. ter algo de, assemelhar-se, lembrar. 3. imitar de forma caricatural, destorcida, zombeteira. 4. apresentar, exibir como verdadeiro aquilo que não é; simular, fingir. 5. falar mal (um idioma).

[17Com outras palavras: de Sophia. Esta é a doutrina dos valentinianos.

[18Clara manifestação do Alexandrino sobre a distinção pessoal do Pai e do Filho, sem observação alguma de subordinabilidade, vide J.LEBRETON, “La théologie de la Trinité” , p.65; W.BIERBAUM, “Geschichte als Paidagogia Theou” , p.252.

[19Para a crítica textual vide J.P.OSTAGE “On the Text” , p.238.

[20Discípulos do herege Montano, que se estabeleceu na região da Frígia. Esta heresia parece que não era popular nos meios frequentados por Clemente, como o demonstra o que o Alexandrino postergue seu exame para um futuro e não a considere como algo urgente.

[21Este escrito clementino deveria completar os Stromatas, mas nem sequer chegou a escrever. O conteúdo do dito escrito correspondia ao que os filósofos da época chamavam “teologia” : A.MÉHAT, “Clément d’Alexandrie et le sens de l’Écriture” , p.361; ID., “Étude” , p. 164; E. De FAYE, “Clément d’Alexandrie” , p.92.

[22Parece que Clemente cita o evangelho de Mateus com lições próprias de Lucas; G. ZAPHIRIS, “Le texte du Discours sur la Montagne” , p.152.

[23Sobre a origem destas palavras vide L.FRÜCHTEL, “Neue Textzeugnisse” , p.82. O mal não reside na experiência nem na substância do homem, como afirmam alguns hereges, mas sim em alguns determinados atos humanos: J.FERGUSON, “The Achievement” , p.73. W.E.G.FLOYD, “The problem of evil” , p.21.

[24A respeito da possível fonte dessas palavras, vide O.PRUNET, “La morale” , p.192.

[25Sobre o pecado e sua origem no pensamento de Clemente vide O.PRUNET, “La morale” , pp.53-60.

[26Conforme os sistemas gnósticos dos hereges, que distinguem entre o Deus bom e o Deus Criador, que era mau, vide C.GUASCO, “Lo gnostico cristiano” , p.266. Sobre o dualismo pessimista dos hereges, vide FR.BURI, “Clemens Alexandrinus” , pp. 17-19.