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- Gregorio Nissa Platonismo - JEAN DANIÉLOU - PLATONISMO E TEOLOGIA MÍSTICA
Excertos da tese de doutorado de Maria Cândida Monteiro de Pacheco
No horizonte filosófico da época é comum ao pensamento pagão e cristão o reconhecimento unânime do valor e do predomínio do platonismo.
Desde o século II, o platonismo é assumido pelo pensamento cristão como propedêutica à Revelação. O itinerário espiritual de S. Justino [1] é, neste campo , particularmente revelador, definindo uma posição que será válida por mais de dez séculos: a aceitação da filosofia platônica como a mais próxima da verdade cristã. Todos os grandes pensadores cristãos, até ao século XIII [2], procurarão apropriar-se das concepções platônicas, cristianizando-as com maior ou menor felicidade .
Não pode, porém, esquecer-se que nos dois primeiros séculos da nossa era se deu um renascimento do platonismo [3], a que se chamou platonismo médio. Ora o platonismo médio é uma certa interpretação de Platão, selecionando alguns elementos da sua doutrina e sistematizando-os. Nos autores cristãos, o conhecimento de Platão é feito, normalmente, por intermédio do platonismo médio e dos seus textos preferidos.
Em S. Gregorio de Nissa mantêm-se as duas constantes: uma influência direta de Platão, tanto quanto podemos afirmá-la, e um contato com o filósofo, através do platonismo médio.
Autores nossos contemporâneos [4] detectaram uma nítida e até predominante influência de Platão no nosso autor, traduzida em diversas concepções e até na própria terminologia.
É certo que S. Gregório conheceu, por leitura direta, os grandes diálogos - Fedro , Fédon e República - pois deles faz transposições claras. Assim, do Fedro retém o mito dos cavalos, as asas da alma , a disciplina das paixões e não o seu aniquilamento, a visão beatífica, a ideia de leveza da alma pura, que circula no éter celeste. Da República, tira S. Gregório a comparação das paixões com animais , a noção de que as paixões são estranhas ao nous, o que vai desempenhar um papel muito importante na sua teoria da imagem e nas suas concepções ascéticas; ainda o mito da caverna , retomado inúmeras vezes, ora transcrito quase literalmente, ora subjazendo como inspiração básica e recebendo interpretações diversas. Quanto ao Fédon, é inegável que está na base de Dialogus de anima et Resurrectione, pois as circunstâncias e os temas tratados são muito semelhantes.
É interessante notar que, segundo os índices estabelecidos, existem poucas referências explícitas ao Timeu . No entanto, é inegável que está subjacente à visão cosmológica de S. Gregório, embora combinado com elementos estoicos . Do Timeu, retém a divisão geral dos seres em inteligível e sensível ; a oposição entre o imutável e o devir e a forma como se combinam; a ideia da organização do mundo segundo um modelo ideal. Por vezes, serve de base para S. Gregório apresentar a sua divergência das doutrinas platônicas.
Ainda outras noções na obra de S. Gregório revelam influência platônica. Como as alusões, embora reconhecíveis, são pouco literais, não nos autorizam a afirmar uma dependência direta. Possivelmente, para além dos três diálogos mencionados, S. Gregório conheceria o resto da obra platônica, através dos textos dos manuais que circulavam então e que constituíam a base duma cultura platônica comum.
Nas introduções aos tratados de S. Gregório, traduzidos por Laplace, Daniélou e Aubineau, é identificada uma série de temas platônicos. Relevemos, dentre eles, os mais significativos, quanto a nós.
Assim, em De vita Moysis, a descrição da alma liberta das suas paixões (Mos., GNO, VII-I, 112, 13-25; PG, XLIV, 401 A), aproxima-se dum texto do Fedro (246 D); a definição do Ser transcendente e criador como imutável, sem estar sujeito nem ao crescimento nem a diminuição e igualmente refractário a toda a mudança para melhor ou para pior (Mos., GNO, VII-I, 40, 20-25-41, 1-2; PG, XLIV, 333 B-333 C), numa linguagem inconfundivelmente platônica, está muito próxima do Banquete (211 a-b) e da República (380 d); a explicação do erro como uma ilusão, produzida no espírito, dando a aparência de existir ao que não existe (Mos., GNO, VII-I, 40, 4-8; PG, XLIV, 333 A), é muito semelhante a um tema do Sofista (260 C); a alusão ao mito do Fedro (246 B) é clara na descrição da paixão do prazer, que pode ver-se na alegoria dos cavalos, arrastando o carro com uma força irresistível (Mos., GNO, VII-I, 62, 9-17; PG, XLIV, 353 C), enquanto nos três combatentes, que estão no carro, pode reconhecer -se a divisão tripartida da alma em racional, concupiscível e irascível (Mos., GNO, VII-I, 71, 12-19; PG, XLIV, 361 C-361 D), patente no Fedro (253 c-254 c).
Assim, em De virginitate, voltamos a encontrar, no cap. XII (Virg., GNO, Vlll-I, 301, 23-26; PG, XLVI, 373 B), a divisão tripartida da alma do Fedro. Como nota Aubineau [5], as alusões (que poderiam multiplicar-se em relação a outros diálogos de Platão) não são literais e, se traduzem uma mentalidade platônica, podem indicar apenas um conhecimento indireto, através da vulgarização cultural de certos temas. O vocabulário do Tratado pertence também a essa espécie de linguagem comum platônica: a ideia do observatório elevado, donde se abrange uma visão geral das coisas humanas, é traduzida por skopia [6]; aparece uma série de metáforas relativas à alma - proselousthai [7]; borbopos [8]; ophthalmos [9]; pteron [10]; meteoropein [11].
No cap. IV [12], S. Gregório, falando do homem de espirito espesso, que olha para baixo e cuja alma se inclina para os prazeres do corpo, aproxima-se de tal modo dum texto da República (IX, 586 a) que é impossível o conhecimento apenas indireto. Ainda no cap. XI [13], quase decalca a ascensão dialética do Banquete.
Relativamente a In Canticum Canticorum, Langerbeck releva, na edição crítica, bastantes semelhanças com textos de Platão, mais ou menos literais, provenientes do Fédon, Crátilo, Teeteto , Parmênides , Filebo , Fedro, Protágoras, Górgias, República, Timeu, Críton, Leis e Carta VII . As alusões ao Fedro e à República são as mais numerosas. Na mesma edição, Jaeger e Langerbeck veem afinidades entre os textos dos Sermões e os de Protágoras, Górgias, Ménon, Fédon, Banquete, República, Fedro, Teeteto, Filebo, Timeu e Críton, com predomínio do Fédon e da República.
Podemos, pois, concluir que S. Gregório foi inegavelmente influenciado pelo pensamento de Platão, o que explica a distinção entre o mundo sensível e inteligível, esquema básico do seu pensamento, embora transformado e cristianizado, a noção da imutabilidade como perfeição, a dimensão ascensional da vida espiritual, a identificação do Ser e do Bem, o caráter negativo do mal, a teoria da participação, o ser à imagem... Possivelmente, terá conhecido os grandes ternas platônicos ou por contato direto ou através dos textos escolares e das antologias, partilhando, com a sua época, essa cultura platônica comum.
A influência platônica exerceu-se ainda em S. Gregório, por forma indireta, através dos médio-platônicos pagãos e cristãos. A ligação de S. Gregório com essa corrente de pensamento é, no entanto, ainda pouco clara para nós, até porque a sua história não está ainda feita. Merki [14] aproxima S. Gregório do neoplatônico Hiérocles, em questões de antropologia, e releva analogias de vocabulário. Sendo Hiérocles posterior , levanta-se o problema duma fonte desconhecida [15]. Segundo Theiler e Langerbeck, haveria duas correntes dentro do neoplatonismo: uma, em que se integram Plotino , Porfírio e Jâmblico; outra representando o pensamento de Amónio Sacas, mestre de Plotino e Orígenes , que teria sido introduzida em Atenas pelo retórico Longino, mantendo-se na tradição escolar do século IV [16]. Nessa época, frequentou S. Basílio as escolas de Atenas, sendo então possível que conhecesse essa dupla corrente e a tivesse transmitido a seu irmão .
A utilização cristã de Platão depende, naturalmente, dos textos seleccionados pelos comentadores pagãos e até da sua exegese [17]. Assim, podem encontrar-se em S. Justino, Clemente, Eusébio, Teodoreto e Orígenes, quase invariavelmente, as mesmas citações de Platão. Há textos platônicos para os quais é possível estabelecer-se uma espécie de «cadeia» transmissora, já que nos aparecem em quase todos os pensadores cristãos. Assim, por exemplo, o texto do Timeu (28 c), do Teeteto (176 a-b), do Fedro (249 d). Esses temas aparecem integrados em perspectivas diversas da original e estão mais ou menos contaminados pelas interpretações cristãs e dependentes delas.
Facilmente se entende, pois, a dificuldade de apontarmos Platão como fonte do pensamento de S. Gregorio, no sentido estrito da palavra. Se é indiscutível a presença de temáticas e terminologias platônicas na sua obra, é extremamente complexo delinear os processos como essa influência se exerceu, problema aliás comum a todos os autores cristãos dessa época.
É inegável que S. Gregório encontrou em Platão, directa ou indirectamente, uma fonte de inspiração. A multiplicidade dos seus contactos com as fontes clássicas e a vastidão da sua cultura atenuam, porém, a influência platônica. Podemos afirmar que Platão é uma das linhas dominantes do seu pensamento, mas nunca que é exclusiva.