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Abade Arsênio III

terça-feira 29 de março de 2022

      

Seleção e tradução de D. Estevão Bettencourt

Abade Ars  ênio - DO ABADE ARSÊNIO (cont.)

32. Quando o Abade Arsênio residia nas regiões do Egito   inferior  , já que era muito procurado pela gente, julgou bom abandonar tal morada  . Sem, pois, levar coisa alguma consigo, foi ter com os seus discípulos faranitas [1] Alexandre e Zoilo. Disse então a Alexandre: «Levanta-te, e entra num barco». Este assim fez. E a Zoilo disse: «Vem comigo até o rio, e procura-me uma nave que desça para Alexandria; a seguir, embarca-te também tu e reúne-te a teu irmão  ». Zoilo, perturbado por esta ordem  , calou-se.

Assim se separaram um do outro Arsênio e Zoilo.

Por conseguinte, o ancião desceu para a região de Alexandria, onde veio a adoecer gravemente. No entretempo  , os seus discípulos diziam um para o outro: «Será que algum de nós entristeceu o ancião, de modo que nos tenha deixado ?» Nada, porém, encontravam em si que os acusasse, nem se lembravam de lhe ter desobedecido alguma vez.

Ora, tendo recuperado a saúde, o ancião disse: «Irei para junto de meus Pais  ». Assim embarcou-se, e foi para a região de Petra  , onde se achavam os seus discípulos. Quando, porém, se encontrava perto do rio, uma jovem etíope chegou-se, e tocou a sua melote [2]. O ancião repreendeu-a. A jovem replicou: «Se és monge  , retira-te para o monte». Então o ancião, compungido por esta palavra, dizia em si mesmo  : «Arsênio, se és monge, retira-te para o monte». Nessa hora chegaram-lhe ao encontro Alexandre e Zoilo. Como estes lhe caíssem aos pés, também o ancião se precipitou por terra  ; de ambas as partes puseram-se a chorar  . Arsênio então falou,: «Não ouvistes que estive doente?» Responderam-lhe: «Sim». E o ancião a retrucar: «E por que não me fostes ver?» O Abade Alexandre disse: «A tua partida dentre nós não nos foi proveitosa; muitos mesmo ficaram mal impressionados, dizendo: ‘Se não tivessem desobedecido ao ancião, não se teria ido’». Respondeu-lhes: «De novo, pois, hão de dizer os homens: ‘A pomba não encontrou pouso para seus pés, e voltou a Noé dentro da arca». Desta forma se uniram em boa paz  , e permaneceu com eles até o fim da vida.

33. O Abade Daniel referiu ter o Abade Arsênio contado o seguinte, como que falando de ou-* trem; talvez, porém, se tratasse dele mesmo: «Estando certo ancião na cela, desceu a ele uma voz que dizia: ‘Vem, mostrar-te-ei as obras dos homens’». Tendo-se, pois, levantado, saiu, e quem falara, levou-o para certo lugar, onde lhe mostrou um etíope que cortava lenha, e fizera um grande fardo; tentava carregar a este, mas não o podia; ora, em vez de tirar algo do fardo, de novo se punha a cortar» lenha, e acrescentava-a à carga. Isto, ele o ia fazendo por muito tempo.

Tendo caminhado mais um pouco, aquele que falava, de novo mostrou-lhe um homem   colocado ã margem de um lago; hauria água, e derramava-a numa vasilha furada, a qual deixava a água recair no lago.

Disse-lhe de novo: «Vem, mostrar-te-ei ainda outra coisa». Viu então um templo   e dois   homens montados em cavalos; postos um em face   do outro, carregavam um lenho atravessado entre ambos; queriam entrar pela porta  , mas não o conseguiam, por estar o lenho atravessado; um desses homens não se abaixou diante do outro a fim de colocar o lenho em linha reta; por isto permaneceram do lado de fora da porta. «Estes são», disse, «os que carregam com soberba   uma espécie de jugo   de justiça, e não se abaixam a fim de se tornarem retos e caminhar a via humilde de Cristo  ; por isto permanecem fora do reino de Deus  . Aquele que cortava lenha, é o homem réu de muitos pecados, que, em vez de fazer penitência, acrescenta novas iniquidades aos seus pecados. E aquele que hauria água, é o homem que pratica boas obras, mas, por lhes ter misturado algo de mau, perdeu também as boas obras. É preciso, pois, que todo homem exerça a vigilância sobre as suas ações, a fim de que não labute em vão».

34. O mesmo contou que certa vez alguns dos Padres de Alexandria foram ver o Abade Arsênio; um deles era tio do velho Timóteo, arcebispo de Alexandria chamado «o Pobre  », e levava consigo um dos seus sobrinhos. Naquela ocasião o ancião achava-se doente, e não os quis receber  , para que também outros não o fossem procurar e o importunassem. Estava então em Petra de Troas. Aqueles se foram, entristecidos.

Ora deu-se uma invasão de bárbaros, e Arsênio permaneceu, de espontânea vontade, nas regiões do Egito inferior. Sabendo disto, foram de novo visitá-lo, e Arsênio os recebeu com alegria  . Disse-lhe então o irmão que estava com eles: «Não sabes, ó Abade, que te fomos procurar em Troas e que não nos recebestes?» Respondeu-lhe o ancião: «Vós comestes pão, e bebestes água; mas eu, ó filho, em verdade nem pão nem água tomei, nem me assentei, castigando a mim mesmo, até que tive a certeza   de que havíeis chegado ao vosso destino, pois por causa   de mim vos tínheis fatigado. Contudo, desculpai-me, irmãos!» Eles, consolados, se foram.

35. O mesmo contava: «Certo dia chamou-me o Abade Arsênio, e disse-me: ‘Reconforta teu Pai, a fim de que, quando se for para o Senhor, ore por ti e sejas bem sucedido’».

36. Diziam a respeito do Abade Arsênio que, certa vez, tendo ele adoecido na Cétia, o presbítero o levou para a igreja   e o colocou sobre um estrado forrado de peles, pondo pequeno travesseiro debaixo da cabeça dele. Ora um dos anciãos foi visitá-lo, e, vendo-o sobre o estrado com um travesseiro debaixo da cabeça, escandalizou-se, e disse: «Este é o Abade Arsênio? Em tal leito é que repousa?» Então o presbítero, tomando-o à parte, perguntou-lhe: «Qual era teu trabalho   em tua aldeia?»

  •  «Eu era pastor  ».
  •  «Como, então, levavas a vida?»
  •  «Vivia em muita fadiga».
  •  «E agora como levas a vida na cela?»
  •  «Gozo de mais repouso».
  •  «Vês este Abade Arsênio? No século era pai de Imperadores [3], e lhe assistiam mil servos, que se cingiam de cinturões de ouro, traziam todos joias e vestes de seda, tapetes de grande preço se estendiam sob os seus pés. Tu, ao contrário, como pastor, não tinhas no mundo o bem-estar que tens agora, ao passo que este não tem aqui o luxo de que desfrutava no mundo. Por conseguinte, eis que tu gozas de alívio, enquanto este é atribulado».

    Aquele, ouvindo tais palavras, foi compungido, e prostrou-se com arrependimento, dizendo: «Perdoa-me, Abade, pequei, pois, sem dúvida, tal é a verdadeira via: este veio para a humilhação, ao passo que eu vim para o alívio». E, edificado, retirou-se o ancião.



  • [1Da região de Fará — península do Sinai.

    [2Manto dos antigos monges, originariamente feito de pele de carneiro.

    [3Antes de retirar-se para o deserto era oficial graduado na corte, preceptor dos príncipes Arcádio e Honório.