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Serafim Luz

terça-feira 29 de março de 2022

      

Excertos do livro "Instruções Espirituais - Diálogos   como Motovilov", trad. de Helena Livramento
A luz   incriada

Então o padre   Serafim me tomou pelos ombros e, apertando-os fortemente, disse:

  •  Estamos ambos, vós e eu, na plenitude   do Espírito Santo. Por que não me olhais?
  •  Não posso, padre, olhar-vos. Brotam raios   de vossos olhos. O vosso rosto tornou-se mais luminoso do que o sol  . Os olhos me doem...

    O padre Serafim disse:

  •  Não tenhais medo, amigo de Deus  . Também vos tornastes tão luminoso quanto eu. Vós também estais agora na plenitude do Espírito Santo, de outro modo não teríeis podido me ver.

    Inclinando a sua cabeça para mim  , disse-me ao ouvido:

  •  Agradecei ao Senhor por vos ter concedido esta graça indizível. Vistes - nem mesmo fiz o sinal da cruz. No meu coração  , em pensamento   somente, rezei: "Senhor, tornai-me digno de ver claramente, com os olhos da carne  , a descida do Espírito Santo como a teus servidores eleitos quando te dignaste aparecer  -lhes na magnificência de tua glória  !" E imediatamente Deus atendeu a humilde oração do miserável Serafim. Como não agradecer-lhe por esse dom extraordinário que a nós dois   ele concede? Não é também sempre aos grandes eremitas que Deus manifesta assim a sua graça. Como mãe amorosa, esta graça se dignou consolar o vosso coração desolado, a pedido da própria Mãe de Deus. Mas, por que não me olhais nos olhos? Ousai olhar-me sem temor, Deus está conosco.

    Depois destas palavras, levantei os olhos para o rosto e um medo maior ainda tomou posse de mim. Imaginai-vos no meio do sol, na claridade mais forte   de seus raios de meio-dia  , o rosto de um homem   que vos fala. Vedes o movimento   de seus lábios, a expressão cambiante de seus olhos, vós ouvis o som   de sua voz, sentis a pressão de suas mãos nos vossos ombros mas, ao mesmo tempo, não percebeis nem suas mãos, nem seu corpo, nem o vosso, nada senão uma esplendorosa luz se propagando ao redor, a uma distância de muitos metros, iluminando a neve que recobria a campina e caía sobre o grande staretz e sobre mim. Pode-se representar a situação na qual me encontrava então?

  •  Que sentis agora?, perguntou o staretz.
  •  Sinto-me extraordinariamente bem.
  •  Como "bem"? Que quereis dizer por "bem"?
  •  Minha alma   está cheia de um silêncio e de uma paz   inexplicável.
  •  Aí está, amigo de Deus, esta paz da qual o Senhor falava quando ele dizia a seus discípulos: "Deixo-vos a minha paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá. Se fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; mas porque não sois do mundo e minha escolha   vos separou do mundo, o mundo por isso vos odeia. Eu vos disse tais coisas para terdes paz em mim (...) tende coragem  : eu venci o mundo" (Jo 14,27; 15,19; 16,33). É a esses homens eleitos por Deus, mas odiados pelo mundo, que Deus dá a paz que sentis agora, "a paz de Deus, diz o Apóstolo, que excede toda a compreensão" (Fl 4,7). O Apóstolo denomina-a assim porque nenhuma palavra pode exprimir o bem-estar espiritual que ela faz nascer nos corações dos homens em que o Senhor a implanta. Ele mesmo a chama sua paz (Jo 14,27). Fruto   da generosidade de Cristo   e não deste mundo, nenhuma felicidade   terrena a pode dar. Enviada do alto pelo próprio Deus, ela é a paz de Deus... Que sentis agora?
  •  Uma delícia extraordinária.
  •  É a delícia de que fala a Escritura. "Eles ficam saciados com a gordura de tua casa  , tu os embriagas com um rio de delícias" (SI 36[35],9). Ela transborda do nosso coração, derrama-se em nossas veias, traz-nos uma sensação   de delícia inexprimível... Que sentis, ainda?
  •  Uma extraordinária alegria   em todo o meu coração.
  •  Quando o Espírito Santo desce sobre o homem com a plenitude de seus dons, a alma humana fica cheia de uma alegria indescritível. É dessa alegria que o Senhor fala no evangelho quando diz: "Quando uma mulher está para dar à luz, entristece-se porque a sua hora chegou; quando, porém, nasce a criança ela já não se lembra dos sofrimentos, pela alegria de ter vindo ao mundo um homem. Também vós, agora, estais tristes; mas eu vos verei de novo e vosso coracão se alegrará e ninguém vos tirará a vossa alegria" (Jo 16,21-22).

    Por grande e consoladora que ela seja, a alegria que sentis neste momento nada é, em comparação com aquela da qual o Senhor disse através de seu Apóstolo: "o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, isso Deus preparou para aqueles que o amam" (iCor 2,9). O que nos é concedido presentemente é apenas uma antecipação dessa alegria suprema. E, se desde agora, nós sentimos deleite, júbilo e bem-estar, que dizer dessa outra alegria que nos está reservada no céu, depois de ter, aqui na terra  , chorado? Já haveis chorado bastante em vossa vida e vede que consolação na alegria o Senhor vos dá aqui na terra. Cabe a nós, agora, amigo de Deus, trabalhar   com todas as nossas forças para subirmos de glória em glória "até que alcancemos todos nós a unidade   da fé e do pleno   conhecimento do Filho de Deus  , o estado   de Homem Perfeito  , a medida da estatura da plenitude de Cristo" (Ef 4,13). "Os que põem a sua esperança em Javé renovam as suas forças, formam asas como as águias, correm e não se fatigam, caminham e não se cansam" (Is 40,31). "Eles caminham de terraço em terraço e Deus lhes aparece em Sião" (SI 84[83],8). É então que a nossa alegria atual, pequena e breve, se manifestará em toda a sua plenitude e ninguém nos poderá arrebatá-la, repletos como estaremos de indizíveis gozos celestes. Que sentis, ainda, amigo de Deus?

  •  Um calor extraordinário.
  •  Como, um calor? Não estamos na floresta, em plena neve? A neve está sob nossos pés, estamos cobertos dela e ela continua caindo... De que calor se trata?
  •  Um calor semelhante ao de um banho de vapor.
  •  E o cheiro é como no banho?
  •  Oh, não! Nada sobre a terra se pode comparar a esse perfume. No tempo em que a minha mãe vivia, ainda gostava de dançar e quando eu ia a um baile, ela me aspergia perfumes que comprava nas melhores lojas de Kasan e pagava muito caro. O seu odor não é comparável a estes aromas.

    O padre Serafim sorriu.

  •  Eu sei, meu amigo, tanto quanto vós, e é de propósito que vos interrogo. É bem verdade, nenhum perfume terreno pode ser comparado ao bom odor que respiramos neste momento, o bom odor do Espírito Santo. O que pode, sobre a terra, ser-lhe comparado? Dissestes, ainda há pouco, que fazia calor, como no banho. Mas olhai, a neve que nos cobre, a vós e a mim, não se funde, assim como a que está sob os nossos pés. O calor não está no ar, mas no nosso interior. É este calor que o Espírito Santo nos faz pedir na oração: "Que teu Espírito Santo nos aqueça!" Este calor permitia aos eremitas, homens e mulheres, não temerem o frio   do inverno, envolvidos, como estavam, como que num manto de peles, numa veste   tecida pelo Espírito Santo.

    É assim que, na realidade, deveria ser, habitando a graça divina no mais profundo de nós, em nosso coração. O Senhor disse: "O Reino de Deus   está dentro de vós" (Lc   17,21). Por Reino dos Céus ele entende a graça do Espírito Santo. Este Reino de Deus está em nós, agora. O Espírito Santo nos ilumina e nos aquece. Enche o ar de perfumes variados, alegra os nossos sentidos, sacia o nosso coração com alegria indizível. O nosso estado atual é semelhante àquele do qual fala o Apóstolo: "Porquanto o Reino de Deus não consiste em comida e bebida, mas é justiça, paz e alegria no Espírito Santo" (Rm 14,17). A nossa fé não se baseia em palavras de sabedoria   terrena, mas na manifestação do poderio do Espírito. Trata-se do estado em que estamos atualmente e que o Senhor tinha em vista quando dizia: "Em verdade vos digo que estão aqui presentes alguns que não provarão a morte até que vejam o Reino de Deus chegando com poder" (Mc   9,1).

    Eis aí, amigo de Deus, a alegria incomparável que o Senhor se dignou conceder-nos. Eis o que é estar "na plenitude do Espírito Santo". É isto o que entende São Macário, o Egípcio, quando escreve: "Eu mesmo estive na plenitude do Espírito Santo". Humildes quanto somos, o Senhor nos encheu da plenitude de seu Espírito. Parece-me que, a partir deste momento, não tereis de me interrogar mais sobre a maneira como se manifesta, no homem, a presença da graça do Espírito Santo.

    Esta manifestação permanecerá para sempre em vossa memória.

  •  Não sei, Padre, se Deus me tornará digno de me lembrar dela sempre com tanta nitidez como agora.