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Schopenhauer (MVR1:434-435) – justiça

terça-feira 14 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

No encadeamento de nosso modo de consideração encontramos como conteúdo da noção de INJUSTIÇA aquela índole da conduta de um indivíduo na qual este estende tão longe a afirmação da Vontade a aparecer em seu corpo que ela vai até a negação da Vontade que aparece num corpo alheio. Também indicamos em exemplos bastante gerais o limite onde começa o domínio da injustiça, ao determinar, ao mesmo tempo, suas gradações desde os mais elevados graus até os mais baixos, por meio de alguns conceitos elementares. Em conformidade com tudo o que foi dito, o conceito de INJUSTIÇA é originário e positivo, já o oposto dele, o de JUSTIÇA, é derivado e negativo. Temos, assim, de nos ater não às palavras, mas aos conceitos. Noutros termos, jamais se falaria de JUSTIÇA se não houvesse INJUSTIÇA. O conceito de JUSTIÇA contém meramente a negação da injustiça: a ele será subsumida toda ação que não ultrapasse o limite acima exposto, vale dizer, não seja negação da vontade alheia em favor da mais forte afirmação da própria vontade. O referido limite recorta, conseguintemente, em referência a uma simples e pura determinação MORAL, todo o domínio das possíveis ações em injustas ou justas. Desde que uma ação, na maneira acima descrita, não invada a esfera da afirmação alheia da vontade, negando a esta, a mesma não é injusta. Por isso, a recusa em ajudar alguém numa situação urgente de necessidade, ou o considerar com calma a morte alheia por inanição em meio ao próprio excedente, de fato são atitudes cruéis e satânicas, porém não injustas. Todavia, e isso se pode dizer com plena segurança, quem é capaz de levar a insensibilidade e a dureza de coração a um tal ponto, decerto será capaz de praticar qualquer injustiça tão logo seus desejos o exijam, e nenhuma coerção os impeça.

O conceito de JUSTIÇA, como negação da injustiça, encontra sua principal aplicação, e sem dúvida sua primeira origem, nos casos em que uma tentada injustiça por violência é impedida. Ora, como uma tal defesa não pode ser uma injustiça, consequentemente é justa, embora o ato de violência ali praticado, considerado em si e isoladamente, seja injustiça, no entanto aqui justificado por seu motivo, isto é, converte-se em direito. Se um indivíduo vai tão longe na afirmação de sua vontade até invadir a esfera da afirmação da vontade essencial à minha pessoa enquanto tal e assim a nega, então minha defesa dessa invasão é a negação daquela negação e, nesse sentido, de minha parte nada mais é senão a afirmação da Vontade que aparece essencial e originariamente em meu corpo e implicite se expressa por meio do simples fenômeno desse corpo; em consequência, não é injustiça, portanto, é algo JUSTO. Noutros termos: tenho o DIREITO de negar aquela negação alheia com a força necessária para a sua supressão; e é fácil ver que isso pode ir até a morte do outro indivíduo, cuja ação danosa, enquanto violência exterior impositiva, pode ser impedida sem injustiça alguma com uma reação poderosa que se lhe sobrepõe, por conseguinte com justiça. Pois tudo o que acontece do meu lado reside apenas na esfera da afirmação da vontade essencial à minha pessoa enquanto tal, já expressa por ela (que é o cenário da luta); ora, isso não invade a esfera da afirmação alheia, logo, é apenas negação da negação, portanto, afirmação, e não em si mesma negação. Dessa perspectiva, se a vontade de um outro nega a minha vontade, como esta aparece em meu corpo e no uso das forças deste para minha conservação, posso, SEM INJUSTIÇA, exercer COAÇÃO sobre aquela vontade para que ela desista de sua negação, sem que isso implique a negação da vontade alheia, a qual se mantém em seu limite; ou seja, tenho nesse alcance um DIREITO DE COAÇÃO.


Ver online : O Mundo como Vontade e como Representação Tomo I