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Schopenhauer (SQRPRS:§§41-42) – Sujeito do conhecer e objeto; Sujeito do querer

terça-feira 14 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Todo conhecimento pressupõe, de maneira incontornável, sujeito e objeto. Por essa razão, também a autoconsciência não é, sem mais, simples, mas desmembra-se, assim como a consciência de outras coisas (isto é, a faculdade de intuição), num conhecido e num cognoscente. Aqui o conhecido aparece total e exclusivamente como vontade.

De acordo com isso, o sujeito conhece a si mesmo apenas como querente, não, porém, como cognoscente. Pois o eu que representa, o sujeito do conhecer, jamais pode tornar-se, ele próprio, representação ou objeto – uma vez que, como o correlato necessário de todas as representações, é condição destas; a respeito dele vale a bela sentença do sagrado Upanixade  : Id videndum non est: omnia videt; et id audiendum non est: omnia audit; sciendum non est: omnia scit; et intelligendum non est: omnia intelligit. Praeter id, videns, et sciens, et audiens, et intelligens ens aliud non est. [Não se pode vê-lo: ele tudo vê; não se pode ouvi-lo: ele tudo ouve; não se pode saber dele: ele tudo sabe, e não se pode conhecê-lo: ele conhece tudo. Além desse ente vidente, sábio, ouvinte e cognoscente, não existe nenhum outro.] – Oupnekhat, vol. I, p. 202. -

Em razão disso, não há, portanto, um conhecer do conhecer, porque para tanto seria exigível que o sujeito se separasse do conhecer, e então, todavia, conhecesse o conhecer, o que é impossível.

A objeção: “eu não conheço apenas, senão que sei também que conheço”, responderia: é somente na expressão que teu saber do teu conhecer é diferente de teu conhecer. “Eu sei que conheço” não diz mais do que “eu conheço”, e isso – assim, sem ulterior determinação – não diz mais do que “eu”. Se teu conhecer e teu saber desse conhecer são duas coisas distintas, tente então uma vez ter cada um deles, unicamente por si: conhecer agora, sem por causa disso saber; e agora apenas saber do conhecer, sem que esse saber seja ao mesmo tempo o conhecer. É certo que se pode fazer abstração de todo conhecer particular, e chegar assim à sentença: “eu conheço”, que é a derradeira abstração que nos possível, mas que é idêntica à sentença “há objetos para mim”, e esta, por sua vez, é idêntica a “eu sou sujeito”, o que não contém mais do que o mero “eu”.

Alguém poderia, no entanto, perguntar: se o sujeito não é conhecido, de onde nos seriam conhecidas suas diferentes forças de conhecimento, tais como sensibilidade, entendimento, razão? – Estas não nos são conhecidas porque o conhecer se tornou objeto para nós; caso contrário, não existiriam tantos juízos contraditórios a seu respeito. Elas são, muito antes, inferidas, ou, mais corretamente, são expressões gerais das classes de representações estabelecidas, que a todo tempo distinguimos de modo mais ou menos determinado, precisamente naquelas forças de conhecimento. Mas elas foram abstraídas daquelas representações com vistas a seu correlato necessário como sua condição, o sujeito, e, consequentemente, comportam-se em relação às classes de representações precisamente como o sujeito em geral em relação ao objeto em geral. Assim como, juntamente com o sujeito, o objeto é posto de imediato (uma vez que, se não fosse isso, a própria palavra não teria significação), e, do mesmo modo, com o objeto, o sujeito (e, portanto, ser sujeito significa tanto quanto ter um objeto; e ser objeto significa tanto quanto ser conhecido por um sujeito): precisamente do mesmo modo, então, com um objeto de alguma maneira determinado é posto também imediatamente o sujeito, como conhecendo exatamente dessa maneira. Nessa medida, é a mesma coisa se digo: os objetos têm tais e tais determinações que a eles são pertinentes e características; ou se digo: o sujeito conhece de tais e tais modos; e também se digo: os objetos devem ser divididos em tais classes; ou: ao sujeito são próprias tais diferentes forças de conhecimento. Também dessa compreensão encontra—se um rastro naquela prodigiosa mistura de profundidade e superficialidade que é Aristóteles, assim como nele já se encontra, de modo geral, o germe da filosofia crítica. No De anima III, 8 [431b 21], diz ele: ή ψυχή τά ὄντα πώς ἐστι πάντα· (anima quodammodo est universa, quae sunt) [a alma é, em certo sentido, tudo aquilo que é]; em seguida [432a 2]: ό νους ἐστί εἶδος εἶδων, quer dizer, ο entendimento é a forma das formas, και ή αἴσθησις εἶδος αἶσθητών, e a sensibilidade, a forma dos objetos dos sentidos. De acordo com isso, pois, é a mesma coisa se dizemos: a sensibilidade e o entendimento não são mais, ou: o mundo teve seu fim. É o mesmo se dizemos: não existem conceitos, ou: a razão desapareceu, e existem ainda apenas animais.

O desconhecimento dessa relação é motivo de combate entre realismo e idealismo, que por fim aparece como conflito do velho dogmatismo com os kantianos, ou da ontologia e da metafísica com a estética transcendental e a lógica transcendental, o qual repousa sobre o desconhecimento daquela relação na consideração da primeira e da terceira classes de representações por mim estabelecidas; como o conflito entre racionalistas e nominalistas na Idade Média se baseava sobre o desconhecimento daquela relação com referência à segunda de nossas classes de representações.


De acordo com o que foi dito acima, o sujeito do conhecer nunca pode ser conhecido, nem jamais se tornar objeto, representação. Todavia, uma vez que não temos apenas um autoconhecimento externo (na intuição sensível), mas também um autoconhecimento interno, e que todo conhecimento, em consequência de sua essência, pressupõe um conhecido e um cognoscente, então, o conhecido em nós, enquanto tal, não é o cognoscente, mas o querente, o sujeito do querer, a vontade. Partindo da cognição, pode-se dizer que “eu conheço” seria uma proposição analítica; em contrapartida, “eu quero” é uma proposição sintética e, com efeito, a posteriori, a saber, dada por meio da experiência, aqui experiência interna (isto é, apenas no tempo). Nessa medida, portanto, o sujeito do querer seria, para nós, um objeto. Quando olhamos em nosso interior, encontramos a nós mesmos sempre como querendo. No entanto, o querer tem muitos graus, do mais leve desejo até a paixão; e que não somente todos os afetos, mas também todos os movimentos de nossa interioridade, que subsumimos sob o vasto conceito de sentimento, são estados da vontade, eu expliquei muitas vezes, por exemplo, nos Problemas fundamentais da ética, p. 11, e também em outros lugares.

Mas a identidade do sujeito do querer com o sujeito cognoscente, em virtude da qual (necessariamente) a palavra “eu” encerra e designa ambos, é o nó do universo, e, em razão disso, inexplicável. Pois somente as relações entre os objetos são compreensíveis para nós; entre tais relações, porém, dois só podem ser um na medida em que forem partes de um todo. Aqui, em contrapartida, quando se fala do sujeito, não valem mais as regras para o conhecimento dos objetos, e uma efetiva identidade do cognoscente com o conhecido, reconhecido como querente – portanto, do sujeito com o objeto – é imediatamente dada. Mas quem tornar presente para si, corretamente, o inexplicável dessa identidade, a denominará, como eu, o milagre κατ’ἐξοχήν [por excelência].

Como, pois, o correlato subjetivo da primeira classe de representações é o entendimento, o da segunda é a razão, o da terceira é a sensibilidade, assim nós encontramos como o correlato desta quarta classe o sentido interno, ou, em geral, a autoconsciência.


Ver online : On the Fourfold Root of the Principle of Sufficient Reason and Other Writings