O sistema adhyatman-adhidaivam totalmente desenvolvido no período das Upanixades empregava, como meio para se chegar ao absoluto desapego , um programa completo de correspondência entre os fenômenos subjetivos e objetivos. Eis um exemplo, “Uma vez criadas, as divindades do mundo disseram ao Atman (o Eu como Criador): ‘Dai-nos uma moradia onde possamos nos estabelecer e alimentar’. Levou-lhes um touro, e elas disseram: ‘Em verdade, isto não é suficiente para nós’. Levou-lhes então um cavalo, e elas disseram: ‘Em verdade, isto não é suficiente para nós’. Levou-lhes uma pessoa, e elas disseram: ‘Oh! Muito bem! Em verdade, um pessoa está muito bem!’ Ele lhes disse: ‘Entrem em suas respectivas moradas!’ O fogo se fez fala e entrou na boca. O vento se fez alento e penetrou nas narinas. O sol se fez visão e entrou nos olhos. Os quadrantes do céu se fizeram audição e penetraram nos ouvidos. As plantas e as árvores se fizeram cabelos e entraram na pele. A lua se fez mente e entrou no coração . A morte se fez alento descendente e penetrou no umbigo. As águas se fizeram sêmen e entraram no membro viril.”
Ensina-se ao discípulo que aplique o conhecimento de tais correspondências em meditações como esta: “Assim como um jarro se reduz a pó; uma onda, a água; ou um bracelete, a ouro; assim também o universo se reduzirá a mim. Maravilhoso sou ! Adoração a mim! Porque quando o mundo, desde seu deus mais supremo até a menor folha de relva, se dissolve, esta destruição não é minha”.
Evidentemente, deparamo-nos aqui com uma total dissociação entre o eu fenomênico (a personalidade ingenuamente consciente que junto ao seu mundo de nomes e formas será, a seu tempo, destruída) e o outro Eu transcendental (atman), profundamente oculto, essencial ainda que esquecido, mas que quando é recordado lança um emocionante brado que aniquila o mundo: “Maravilhoso sou!” Este outro não é algo criado mas sim o substrato de todas as coisas criadas, de todos os objetos, de todos os processos. “As armas não o cortam, o fogo não o queima, a água não o molha, o vento não o seca.” As faculdades dos sentidos, normalmente direcionadas para fora, buscando, apreendendo com os objetos e reagindo ante eles, não entram em contato com a esfera da realidade permanente, mas apenas com as mudanças passageiras das perecíveis transformações de sua energia. Assim, a força de vontade, orientada para a obtenção de fins mundanos, não resulta em grande ajuda para o homem ; nem os prazeres e as experiências dos sentidos podem iniciar a consciência no segredo da plenitude da vida.
De acordo com o pensamento e a experiência da Índia, o conhecimento das coisas impermanentes não conduz a uma atitude realista, pois estas coisas carecem de substancialidade, perecem. Tampouco podem levar a uma concepção idealista porque a inconsistência das coisas, que estão em fluxo contínuo, se contradizem e refutam uma a outra. As formas fenomênicas são, por natureza, falazes e ilusórias. Quem nelas se apoia encontrará dificuldades. Elas não passam de partículas de uma grande ilusão universal manobrada pelo mágico esquecimento do Eu, sustentada pela ignorância e prolongada pelas paixões enganosas. A pueril ignorância da verdade oculta do Eu é a causa primária de todas as concepções errôneas, das atitudes impróprias e dos consequentes tormentos deste mundo embriagado consigo mesmo.
Encontra-se implícita em tal proposição a base para uma mudança de interesse , não apenas nos meios e objetivos das pessoas mundanas, mas também nos ritos e dogmas da religião destas criaturas iludidas. O criador mitológico, o Senhor do Universo, já não mais importa. Somente a consciência introvertida, voltada e dirigida ao âmago da própria natureza do sujeito, alcança aquela linha fronteiriça onde os acidentes transitórios encontram sua fonte imutável . E tal percepção pode finalmente guiar a consciência para além da fronteira , fazendo-a fundir-se — perecer e tornar-se assim imperecível — no substratum onipresente de toda substância. Assim é o Eu (atman), fonte última, mantenedora e perdurável dos seres; doador de todas as manifestações peculiares, das mudanças das formas e desvios do estado verdadeiro; são os assim chamados vikara: transformações e evoluções da manifestação cósmica. O sábio descobre as causas do que aqui é exposto, ultrapassando o estágio do mero envolvimento, não através da glorificação e da submissão aos deuses, mas sim pelo conhecimento, o conhecimento do Eu.
Este conhecimento é obtido mediante uma destas duas técnicas: 1. rejeição sistemática do mundo — em sua totalidade — como ilusório, ou 2. profunda compreensão da absoluta materialidade do mundo.
Esta é precisamente a posição não teísta, antropocêntrica, que estamos a ponto de alcançar no Ocidente, se é que já não a alcançamos. Afinal, onde habitam os deuses a quem podemos elevar nossas mãos, enviar nossas preces e fazer oblação? Além da Via Láctea existem apenas universos ilhados, galáxias nas infinitudes do espaço — nenhum reino de anjos , nada de mansões celestiais, nenhum trono divino do Pai rodeado por um coro de abençoados que, em beatífico estado, dão revolteios em torno do santo mistério da Trindade . Resta ainda, nestas imensidões, uma região onde a alma , em sua busca, possa chegar aos pés de Deus após ter-se despojado de sua vestimenta material? Ou já não ser á tempo de nos voltarmos para dentro, procurar o divino no recôndito mais profundo, escutar a voz que no silêncio interior manda e consola e extrai do íntimo a graça que excede toda compreensão?