Excertos da tese de Maria Cândida da Costa Reis Monteiro Pacheco, S. Gregório de Nissa - Criação e Tempo
Apesar duma vida agitada, S. Gregório de Nissa tem uma obra vastíssima, traduzindo interesses múltiplos e variados e uma cultura profunda. Nela se reflete a sua personalidade e se retratam as suas preocupações de pensador, de polêmico, de homem da Igreja , de pregador e de místico.
Nesta época, a Igreja da Ásia Menor atravessa um período agitado e a controvérsia está na ordem do dia. Como bispo, S. Gregório vive preocupado com o ataque e a refutação da heresia e os seus escritos dogmáticos [1] enfrentam o pensamento herético com o melhor da sua cultura. Os mais importantes destes escritos são: Contra Eunomium, que representa uma das melhores refutações do arianismo, Oratio catechetica magna e Dialogus de anima et resurrectione, seguindo muito de perto a inspiração do Fédon de Platon - Platão.
Em Contra Eunomium, S. Gregório insere-se na polêmica que opusera Eunômio a S. Basílio, revelando-se exímio nesse gênero literário, profundamente conhecedor do pensamento do adversário, a ponto de refutar as suas afirmações passo a passo. Nesta obra está bem patente a inspiração aristotélica. Tendo o Estagirita fornecido aos Arianos alguns dos seus esquemas de pensamento e, sobretudo, o rigor da sua dialética, S. Gregório, conhecendo e dominando esses métodos, serve-se deles numa argumentação cerrada.
Em Oratio catechetica magna, o Bispo de Nissa revela-se um grande pensador. Como escrito apologético, a obra expõe os dogmas fundamentais da doutrina cristã aos pagãos, judeus e heréticos. O seu maior valor consiste em formar um todo coerente e racional, ultrapassando o nível da fé e da Revelação. Traduz a preocupação de um espírito grego ao tentar entender o que crê, apresentando uma dogmática solidamente estruturada em princípios racionais.
Dialogus de anima et resurrectione está rodeado de circunstâncias especiais. Regressando do Concílio de Antioquia, S. Gregório visita sua irmã Macrina e encontra-a moribunda. Nesta obra enternecedora, está patente a profunda amizade que uniu os dois irmãos. Há um mundo de recordações familiares e uma atitude serena e calma perante a morte. Reunidos, pela última vez, os dois irmãos conversam sobre os grandes temas da alma, da ressurreição, da apocatástase, recordando as opiniões dos filósofos. Pela boca de Macrina, S. Gregório exprime as suas próprias ideias.
Nos outros escritos dogmáticos, S. Gregório mantém, uma posição nitidamente polêmica e faz a refutação do apolinarismo, dos adversários da doutrina do Espírito Santo, do triteísmo, afirmando a natureza divina e humana de Cristo , a unidade das três pessoas da Santíssima Trindade , o valor da liberdade contra o determinismo.
Um segundo grupo de obras é constituído pelos seus escritos exegéticos. S. Gregório continua esse gênero literário iniciado por Philon - Fílon de Alexandria, o qual criara raízes em toda a patrística, definindo-se na confluência de várias correntes: a interpretação alegórica dos mitos, corrente no paganismo, a haggada judaica e a hagiografia cristã. Mesmo no sentido histórico, há um propósito edificante e sente-se na alegoria a preocupação de descobrir um sentido escondido.
A exegese gregoriana tem, no entanto, uma fisionomia própria, que lhe é dada pela articulação de temas filosóficos e bíblicos. Neste grupo [2] incluem-se as obras fundamentais de S. Gregório: In Hexaemeron, De hominis opificio, De vita Moysis, In Canticum Canticorum.
As duas primeiras obras (In Hexaemeron e De hominis opificio) continuam Homiliae in Hexaemeron de S. Basílio. No entanto, apesar desta declaração expressa de S. Gregório (Hex., PG, XLIV, 64 C-65 A), as suas perspectivas são diferentes e mais amplas. Nestas duas obras é abordado o problema da criação do mundo e do homem, com a preocupação nítida do entendimento racional das verdades reveladas no Gênesis.
Em Vida de Moisés - De vita Moysis, Philon - Fílon e Platão estão amplamente presentes. A figura do grande patriarca é apresentada como guia e símbolo da vida espiritual, encarnando o ideal humano, por excelência. A perfeição, para o homem, é definida como um progresso sempre inacabado, tese fundamental da espiritualidade gregoriana.
As homilias que constituem In Canticum Canticorum têm um caráter alegórico e místico. S. Gregório procura, sempre, a concatenação dos temas, numa espécie de unidade interna de desenvolvimento.
Um terceiro grupo de obras [3] está marcado por preocupações ascéticas e é muito importante para o estudo da constituição da teologia monástica. Em De virginitate, S. Gregório afirma, expressamente, ter escrito a obra a pedido de seu irmão Basílio [4]. Absorvido por uma vida de ação e preocupado com a organização dos seus mosteiros, S. Basílio não teria possivelmente nem tempo nem possibilidades para dar ao monaquismo um enquadramento teórico. Cabe, assim, a S. Gregório a tarefa de formular uma teoria da perfeição e criar uma autêntica paideia cristã, que se tornaria o caminho dos monges da sua época. Trata-se de uma orientação de vida assumida perante os modelos propostos e que traduz, por parte de S. Gregório, uma experiência mística autêntica.
É interessante verificar que, mesmo para as obras ascéticas, abundam as fontes clássicas. O ideal ascético e místico revela-se como uma nova antropologia, integrando todos os valores humanos. Não é meramente um caminho de prática religiosa, mas implica, para além duma contínua metanoia interior, a vivência dum ideal humano, que nunca está realizado, mas continuamente se processa.
Neste aspecto, é particularmente importante De instituto christiano [5] representando o cume do pensamento espiritual de S. Gregório. Alguns monges tinham-lhe pedido -conta-nos o Bispo de Nissa [6] -que lhes descrevesse a essência da vida contemplativa e os meios de acesso a ela. O autor confessa ter escrito o tratado baseado nos frutos concedidos anteriormente pelo Espírito Santo [7], provando, assim, a autenticidade humana da sua obra, transmissão duma experiência vivida. A conciliação da graça e do ideal clássico de arete é perfeita, o que explica a influência exercida nos meios monásticos orientais.
Os sermões e discursos de S. Gregório constituem outro grupo de obras, embora não muito numeroso [8] - Abordam uma grande variedade de temas e traduzem uma notável adaptação aos fins que se propõem e ao auditório a que se dirigem [9].
Finalmente, possuímos trinta cartas atribuídas a S. Gregório e incluídas já na edição crítica de Brill. Segundo os usos da retórica de então, são requintadamente elaboradas, denotando um notável domínio da linguagem epistolar. Refletem as preocupações e os interesses variados do autor e abordam um grande número de temas, desde aspectos teológicos e místicos a questões de disciplina religiosa e de arqueologia, ou aludem a simples situações do dia-a-dia.
A análise da obra de S. Gregório, ainda que rápida, permite-nos detectar a multiplicidade dos seus interesses e a riqueza da sua personalidade. Datando a sua primeira obra (De virginitate) de 371, portanto à roda dos seus quarenta anos e situando-se a sua morte cerca de 395, restam-nos vinte e seis anos de atividade intensa, dividida entre a sua ação como bispo, a sua pregação, os contatos com os meios monásticos e a elaboração da sua obra escrita.
Note-se, no entanto, que nos faltam ainda elementos para uma apreciação crítica do seu pensamento. A edição da Patrologia Grega é medíocre. Werner Jaeger , segundo um plano gizado por U. Von Wilamowitz-Moellendorf, na Universidade de Berlim, iniciou em 1908 a publicação da edição crítica, que conta, atualmente, dez volumes, mas não está ainda completa.
Apesar de se ter estabelecido a autenticidade da maioria das obras, resta-nos ainda conhecer a sua cronologia exata, embora tentativas feitas permitam desde já situar as primeiras e as últimas [10]. Faltam-nos, igualmente, os índices gerais da edição crítica, bem como a constituição dum léxico gregoriano.
A análise da obra do Bispo de Nissa permite-nos também detectar as fontes do seu pensamento e distinguir três zonas de influência, que se interpenetram mutuamente: a cultura clássica, a inspiração bíblica e a especulação judaico-cristã.
A posição gregoriana sobre a filosofia clássica e o uso desta pelos cristãos não é definida, no seu pensamento, apenas numa linha teórica, mas traduz uma experiência vivida. S. Gregório foi formado, como se sabe, por uma cultura pagã; conviveu e dialogou com ela e dela aproveitou os melhores frutos, utilizando as riquezas do Egito em proveito dum melhor entendimento da sua fé. Encontramos, pois, em S. Gregório de Nissa, reflexos de Platão, Aristóteles , do neoplatonismo, de Plotino e ainda dos estoicos e cínicos. Todas essas correntes faziam parte duma cultura comum caracterizada pelo sincretismo das épocas de decadência e pela preocupação de fazer reviver um pensamento aureolado de prestígio, por ser mais antigo.