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Safranski (SB:411-412) – corpo e vontade

terça-feira 14 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

No caso de Schopenhauer  , não obstante, se ele situou o corpo tão energicamente no centro de sua metafísica, isto não significava em absoluto que ele quisesse combater a religião idealista do “mais além” (jenseits) da alma e fundar, por sua vez, uma nova religião do “mais aqui” (diesseits), uma espécie de religião do corpo (Religion des Leibes), mas sim que ele queria pôr de lado de uma vez por todas a ilusão de que fosse possível escapar à tirania (Übermacht) deste. Schopenhauer estava muito longe de amar, muito menos de adorar, qualquer coisa que o dominasse, mesmo que fosse seu próprio corpo. Não tinha a menor pretensão de compensar a ilusão destroçada de uma ascensão da alma ao céu das alturas pela ilusão igualmente fugidia de uma viagem a qualquer tipo de céu corporal (Himmelfahrt des Körpers).

A inteira concepção tradicional de uma vontade (anímica-espiritual) capaz de dar ordens ao corpo foi descartada por Schopenhauer quando ele estabeleceu tão claramente a distinção entre a “ação da vontade” (Willensaktion) e o “propósito da vontade” (Willensabsicht) meramente intelectual. “As decisões da vontade (Willensbeschlusse) que se referem ao futuro são meras reflexões da razão sobre o que se quererá quando for chegado o devido momento, mas não são absolutamente atos da vontade (Willensakte) .” [1] Quer uma decisão da vontade, tomada sob orientação da razão, venha a se realizar, quer nunca chegue a se cumprir, não é coisa que dependa da força da razão, mas sim do fato de que o propósito em questão estimule suficientemente ou não minha vontade, tal qual ela se manifesta na totalidade de minha existência corporal. A razão apresenta motivos e pode informar a vontade, mas não tem qualquer controle sobre a maneira como a vontade irá reagir diante desses mesmos motivos e informações que lhe foram apresentados. Nenhuma decisão final ocorre antes da ação, no sentido de que exista uma causalidade (Kausalität), isto é, qualquer relação de causa e efeito, entre a decisão e a ação dela decorrente; ao contrário, a decisão se produz simultaneamente com a ação final. Anteriormente, existia apenas um propósito (Absicht) para que a ação se cumprisse de uma determinada forma e não de outra. Mas a verdadeira decisão (Entschlossenheit) somente se produz pela primeira vez durante e através da ação. “Somente a execução (Ausfuhrung) sela a deliberação (Entschluß)”, escreveu Schopenhauer. Aquilo que realmente sou não posso encontrar em meus propósitos, mas somente naquilo que realizei e isto sempre significa a imagem de minha vida transformada em corpo. Não existe qualquer evasão (Entkommen) possível para um mundo espiritual que se encontre por detrás (Hinterwelt) do mundo material e que possa atribuir à minha vida prática um sentido “mais profundo” (tieferen) ou sequer me prometa qualquer tipo de absolvição. Os fatos de minha vida são o livro aberto de minha identidade. O que eu sou é aquilo que eu quis ser (Was ich hin, das habe ich gewollt). A vontade que existe em mim não é aquilo que eu podería “ter feito” (machen können); a vontade é o que eu sou e a vontade já se cumpriu (geschieht) em mim.


Ver online : Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia


[1Idem, ibidem, p. 158. (NA).